Necessidade de outorga conjugal para prestar fiança em contrato de locação – análise feita à luz da decisão do Recurso Especial n. 1.525.638

A fiança trata-se de garantia pessoal ou fidejussória, e constitui meio de garantia de pagamento prestada por um sujeito terceiro à relação obrigacional. Distingue-se da garantia real justamente por isso, uma vez que a segurança de pagamento se dá mediante promessa de terceiro. Na garantia real, a segurança se dá mediante a entrega de bem móvel ou imóvel pertencente ao próprio patrimônio do devedor.

Caio Mário da Silva Pereira define a fiança como “o contrato por via do qual uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”. Em outras palavras, complementa a sua definição apontando que “o fiador garante o adimplemento do afiançado, e firma o compromisso de solver, se o não fizer o devedor”[1].

Para Maria Helena Diniz, “haverá contrato de fiança sempre que alguém assumir, perante o credor, a obrigação de pagar a dívida, se o devedor não o fizer. É negócio entabulado entre credor e fiador, prescindindo da presença do devedor, podendo até mesmo ser levado a efeito sem o seu consentimento ou contra a sua vontade (CC, art. 820). O devedor não é parte na relação jurídica fidejussória”. Ela ainda acrescenta que “o contrato de fiança será intuitu personae relativamente ao fiador, porque para a sua celebração será imprescindível a confiança que inspirar ao credor. O fiador terá responsabilidade pelo débito alheio”.[2]

Muito comumente utilizada em contratos de locação, a fiança encontra-se prevista no artigo 37 da Lei n. 8.245/91 (Lei do Inquilinato) como uma das modalidades de garantias locatícias.

A questão que se coloca em debate adiante é: se pela interpretação do disposto no art. 1.642, I, do Código Civil, o cônjuge, no exercício da atividade profissional ou empresarial, estaria dispensado da autorização do outro cônjuge para prestar fiança.

O E. Superior enfrentou o assunto nos autos do Recurso Especial n. 1.525.638, de Relatoria do Ilustre Ministro Antonio Carlos Ferreira.

De início, convém relatar que o Recurso Especial em comento é oriundo dos autos de Embargos de Terceiro opostos em Execução de Título Extrajudicial que tinha por objeto débitos oriundos de contrato de locação, em que figuravam como executadas a locatária (pessoa jurídica) e a fiadora (sócia da pessoa jurídica). O Embargante, marido da locatária e fiadora, teve seus ativos financeiros bloqueados no âmbito da referida Execução, o que alegou ser indevido já que não fez parte do contrato de locação tampouco anuiu com a fiança prestada por sua esposa. Sua pretensão era o reconhecimento de nulidade da locação e o desbloqueio de suas contas bancárias.

Em 1ª instância, os Embargos de Terceiro foram julgados improcedentes, tendo o Magistrado a quo entendido que “quando a fiança é prestada por cônjuge sócio de uma sociedade empresarial, a concessão de outorga pelo seu cônjuge é dispensável”. E assim o fez com base no disposto no art. 1.642, inciso I, do Código Civil, que assim dispõe:

“Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livremente:

I – praticar todos os atos de disposição e de administração necessários ao desempenho de sua profissão, com as limitações estabelecidas no inciso I do art. 1.647; …”

Ao final, concluiu o Magistrado de 1ª instância que “o dispositivo em análise autoriza o cônjuge profissional a atuar livremente, dispensando a outorga uxória, para o desempenho de suas atividades econômicas, como de profissional liberal ou autônomo, comerciante ou industrial”.

Em sede de Apelação interposta pelo Embargante, no entanto, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo reformou essa decisão. O E. Desembargador Relator Clóvis Castelo entendeu pela aplicação, no caso em questão, das restrições do art. 1.647, inciso I, e do art. 1.642, inciso IV, ambos do Código Civil. Ou seja, de maneira diametralmente oposta ao Juízo de 1º grau, o E. Tribunal decidiu que “apesar do artigo 1.642 assegurar aos cônjuges o direito de livremente praticar todos os atos de disposição e de administração ao desempenho de sua profissão, o próprio dispositivo ressalva as limitações do artigo 1.647, inciso I, que compreende alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis. Por isso, facultou-se ao cônjuge demandar a rescisão dos contratos de fiança (artigo 1.642, IV)”.

Mais tarde, ao julgar Recurso Especial interposto pelo Embargante, o E. Superior Tribunal de Justiça chancelou a solução conferida ao caso pelo Tribunal Estadual ao confirmar que, de fato, há necessidade de outorga conjugal para o contrato de fiança, exceto no regime da separação convencional de bens, conforme expressamente dispõe o artigo 1.647, inciso III, do Código Civil.

Aliás, convém transcrever o disposto no citado artigo:

“Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;

II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;

III – prestar fiança ou aval;

IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.” (grifei)

Ao assim dispor, fica evidente que o legislador visou proteger o patrimônio comum do casal. Caso fosse permitido a um dos cônjuges prestar fiança livremente, o patrimônio do casal, em sua totalidade, responderia pela obrigação assumida, sem anuência ou, eventualmente, nem mesmo ciência do outro cônjuge.

Não à toa, em razão do disposto no Código Civil, o E. Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 332, e que estabelece que “a fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia”.

Por isso é que, na visão do Ministro Relator do recurso, admitir que o disposto no artigo 1.642, inciso I, do Código Civil autorizaria o cônjuge a prestar fiança sem a anuência do outro, como o fez o Juízo em 1ª instância, seria o mesmo que reconhecer que o fiador poderia comprometer o patrimônio comum do casal se a fiança fosse prestada no exercício da atividade profissional ou empresarial, mas não podendo fazê-lo em outras situações, o que não faria sentido algum.

Ou pior: permitir que se preste fiança sem outorga uxória poderia levar, em última análise, à alienação forçada dos bens imóveis do casal, independentemente da anuência ou até mesmo do conhecimento do outro cônjuge, e que é justamente o que o nosso ordenamento civil quer evitar com o disposto no inciso I do artigo 1.647, acima transcrito.

Com base em tais argumentos, o Il. Ministro Relator concluiu, a nosso ver de maneira correta, que “independentemente da qualidade de que se reveste o fiador, a legislação de regência exige a outorga conjugal, sob pena de nulidade do negócio jurídico”.


[1] Instituições de Direito Civil, V. 3, Contratos – 19. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.

[2] Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 3: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais – 20. Ed. rev. – São Paulo: Saraiva, 2004.

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